09 março 2006

A águia que quase virou galinha

“ O tempo está chegando quando o homem não mais lançará a flecha do seu desejo para além de si mesmo e a corda do seu arco se esquecerá de como vibrar...O tempo está chegando, quando o homem não mais dará à luz de uma estrela. O tempo do mais desprezível dos homens...” Nietzsche
A idéia desta estória não é minha. Meu é só o jeito de contar sobre uma águia que foi criada num galinheiro e foi aprendendo sobre o jeito galináceo de ser, pensar, de ciscar a terra, de comer milho, de dormir em poleiros.

E na medida em que aprendia, ia esquecendo as poucas lembranças que lhe restavam do passado. É sempre assim: todo aprendizado exige um esquecimento...e ela desaprendeu:

O cume das montanhas, os vôos nas nuvens, a vista se perdendo no horizonte, o delicioso sentimento de dignidade e liberdade...

Como não havia ninguém que lhe falasse destas coisas, e todas as galinhas cacarejavam os mesmos catecismos, ela acabou por acreditar que ela não passava de uma galinha com perturbação hormonal, tudo grande demais,aquele bico curvo, sinal certo de acromegalia, e desejava muito que o seu cocô tivesse o mesmo cheiro certo de cocô das galinhas...

Um dia apareceu por lá um homem que vivera nas montanhas e vira o vôo orgulhoso das águias.

“Que é que você faz aqui?,” ele perguntou. “Este é o meu lugar”, ela respondeu.” "Todo mundo sabe que galinhas vivem em galinheiros, comem milho, ciscam o chão, botam ovos e finalmente viram canja:nada se perde, utilidade total...” “Mas você não é galinha.” Ele disse. "É uma águia."
“De jeito nenhum. Águia voa alto. Eu nem sequer voar sei. Pra dizer a verdade, nem quero. A altura me dá vertigens. É mais seguro ir andando, passo a passo...”

E não houve argumento que mudasse a cabeça da águia esquecida. Até o homem, não agüentando mais ver aquela coisa triste, uma águia transformada em galinha, agarrou a águia à força, e a levou até o alto de uma montanha.

A pobre águia começou a cacarejar de terror, mas o homem não teve compaixão; jogou-a no vazio do abismo.

Foi então que o pavor, misturado à memórias que ainda moravam em seu corpo, fez as asas baterem, a princípio em pânico, mas pouco a pouco com tranqüila dignidade, até abrirem confiantes, reconhecendo aquele espaço imenso que lhe fora roubado. E ela finalmente compreendeu que a sua natureza não era de galinha, mas de águia... Rubem Alves

Resgatado por Sérgio Lins - Junho de 2006


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